Molécula oculta pode ser o gatilho da aterosclerose

Molécula oculta pode ser o gatilho da aterosclerose

Principal causa global de infarto e acidente vascular cerebral (AVC), a aterosclerose — o endurecimento de artérias e vasos devido ao acúmulo de gordura — pode se manifestar silenciosamente. Mesmo pacientes que controlam os níveis de colesterol correm o risco de desenvolver o problema, sem que ele seja diagnosticado a tempo. Agora, pesquisadores da Espanha e da Suíça descobriram uma molécula produzida por bactérias intestinais que pode ser um dos motores ocultos da condição.

Perda de músculo + barriga grande: combinação perigosa aos 50 anos

Medicamento impede avanços dos efeitos do AVC

Chamada de imidazol propionato (ImP), a molécula pode ser identificada no sangue, tornando-se um biomarcador em potencial para aterosclerose. No estudo, publicado na revista Nature, os cientistas descobriram que níveis elevados de ImP estão fortemente associados à presença de gordura, cálcio e outras substâncias em pessoas ainda sem sintomas. Ao bloquear a interação do ImP com um receptor celular, eles conseguiram impedir o avanço da doença cardiovascular em modelos animais.

O estudo foi conduzido por uma equipe coordenada por David Sancho e Borja Ibañez, do Centro Nacional de Investigações Cardiovasculares da Espanha, com a participação de pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia. O grupo investigava compostos produzidos pelo microbioma intestinal que pudessem atuar nas fases iniciais da formação de placas de gordura nos vasos sanguíneos, sem depender dos tradicionais fatores de risco, como colesterol alto e hipertensão.

Ao analisar amostras de sangue de dois grandes grupos de voluntários saudáveis — um deles com mais de 1,8 mil pessoas — os cientistas constataram que os níveis de ImP estavam diretamente relacionados à presença e à extensão de placas ateroscleróticas, mesmo em indivíduos sem sintomas. A descoberta foi validada por meio de técnicas avançadas de imagem, como tomografia computadorizada sem contraste e PET/MRI com marcador metabólico.

“Constatamos que o ImP não apenas está associado à aterosclerose subclínica, mas também a formas mais ativas da doença, caracterizadas por maior inflamação local e sistêmica”, afirmam os autores no artigo. Os resultados foram consistentes mesmo após ajustes estatísticos para fatores como idade, sexo, colesterol e pressão arterial.

Além disso, nos experimentos com camundongos geneticamente predispostos à aterosclerose, a administração de ImP na água de beber por algumas semanas foi suficiente para provocar o desenvolvimento de placas de gordura nas artérias, sem qualquer alteração no perfil lipídico dos animais. “Isso nos surpreendeu. Até agora, associávamos diretamente colesterol elevado com a progressão da doença. Esse estudo mostra que há outros caminhos inflamatórios, mediados pela microbiota, capazes de levar ao mesmo desfecho”, destaca Sancho.

O ImP é uma substância produzida a partir da degradação de aminoácidos pelas bactérias intestinais, especialmente em situações de dieta desequilibrada. Os pesquisadores observaram que padrões alimentares considerados saudáveis, como o mediterrâneo, estavam inversamente relacionados aos níveis da molécula. “O estudo reforça a ligação entre microbiota intestinal e risco cardiovascular, destacando que a dieta pode modular essa relação ao influenciar a produção de metabólitos como ImP e, consequentemente, impactar na inflamação”, destaca o cardiologista Carlos Nascimento, da Clínica Metasense.

Para o médico, a descoberta sugere que discutir dieta e saúde intestinal com os pacientes cardiológicos é essencial. “Especialmente para prevenir e gerenciar o risco residual”, diz, referindo-se às chances de eventos cardiovasculares mesmo com ações para reduzir a probabilidade de ocorrerem, como uso de medicamentos para colesterol. “Apesar de não haver controvérsias significativas, o campo é recente, e as diretrizes cardiológicas ainda não abordam diretamente a saúde intestinal, algo que pode evoluir com futuras pesquisas”, acredita.

Qual é a relevância de um biomarcador como o imidazol propionato (ImP) para o rastreamento precoce da aterosclerose?

As doenças cardiovasculares representam uma das principais causas de mortalidade no mundo, sendo a aterosclerose a principal responsável pelos eventos isquêmicos. A identificação precoce, especialmente em pacientes assintomáticos, é de grande relevância clínica, pois permite a adoção antecipada de medidas preventivas e a melhor orientação dos pacientes visando à redução do risco cardiovascular. A introdução do imidazol propionato (ImP) como biomarcador pode contribuir significativamente nesse contexto, ao possibilitar a detecção da doença antes mesmo das alterações observadas nos biomarcadores tradicionalmente utilizados.

Em pacientes com controle adequado do colesterol, mas com doença cardiovascular residual, intervenções direcionadas à inflamação, como sugerido no estudo, podem mudar a prática clínica?

Sim. A aterosclerose é reconhecida como uma doença inflamatória crônica que resulta no acúmulo de placas lipídicas nas artérias. Intervenções que visam a inibição de vias inflamatórias específicas têm se mostrado promissoras, considerando que a fisiopatologia das doenças cardiovasculares é multifatorial. Assim, a atuação terapêutica sobre mecanismos inflamatórios pode representar uma mudança importante no paradigma atual, tradicionalmente centrado no controle do colesterol.

O estudo sugere uma ligação entre a microbiota intestinal e o risco cardiovascular por meio do ImP. Isso reforça a importância de discutir dieta e saúde intestinal com pacientes cardiológicos?

Sim. Os hábitos de vida influenciam diretamente a composição da microbiota intestinal. Dietas com alto teor de gorduras saturadas e um estilo de vida sedentário tendem a causar a disbiose, que é o desequilíbrio na microbiota, marcada pela perda de diversidade e aumento de microrganismos potencialmente prejudiciais. Esse desequilíbrio tem sido associado ao desenvolvimento de inflamação crônica e de diversas doenças, incluindo as cardiovasculares.

Em busca do mecanismo que explica como o ImP se associa à aterosclerose, os cientistas europeus descobriram que a substância age especificamente sobre o receptor imidazolina-1 (I1R), presente em células de defesa conhecidas como mieloides. Esse componente celular já havia sido descrito, mas sua participação na inflamação e no endurecimento das artérias e dos vasos sanguíneos não era conhecida.

Quando os cientistas bloquearam o I1R, seja por meio de manipulação genética em camundongos, seja com o uso de um medicamento experimental chamado AGN192403, o efeito do ImP foi neutralizado. Nos animais tratados, as placas de gordura não se formaram ou regrediram, mesmo quando os camundongos foram submetidos a dietas ricas em colesterol. “Isso indica que o eixo ImP-I1R pode ser explorado tanto para diagnóstico precoce quanto para desenvolvimento de novas terapias independentes do colesterol”, explicam os autores.

Foco

Embora a pesquisa ainda esteja em estágio pré-clínico, os resultados abrem caminho para a criação de testes de sangue que identifiquem indivíduos com risco aumentado de aterosclerose antes mesmo de alterações visíveis em exames convencionais. Além disso, terapias focadas no bloqueio do receptor I1R podem complementar o tratamento com estatinas, oferecendo proteção adicional para pacientes que, apesar de controlarem o colesterol, continuam em risco elevado.

Para o cardiologista Marcelo Bergamo, caso as descobertas sejam confirmadas em estudos clínicos, há importantes implicações para a prevenção e o tratamento da aterosclerose. “Ter um marcador capaz de prever de uma forma mais precoce tanto a inflamação quanto o surgimento das placas é muito importante, especialmente na prevenção de pacientes com risco mais elevado de doenças cardiovasculares e cerebrovasculares”, acredita.

“Hoje, temos uma quantidade grande de medicações muito boas para controlar o colesterol dos pacientes. Mas, apesar disso, ainda há o risco residual”, explica Bergamo. “Então, se tiver outro tratamento que atue em uma via distinta, realmente será algo importante”, diz, lembrando que ainda são necessários mais estudos antes de as descobertas publicadas na revista Nature se reverterem em benefícios clínicos.

Por Paloma Oliveto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *